Não estamos passando por uma crise, mas sim por uma transição de modelos estruturais, arquetípicos, que regem nossa conduta como espécie. Vivemos na nuvem virtual do sociomercado (1), onde a perspectiva econômica de forças de mercado se espalhou além de seus domínios originais, e foi superimposta sobre dimensões políticas, sociais e humanas.
O desenvolvimento deste sociomercado foi acelerado a partir dos anos 1980 com base em três crenças:
- Crença no controle: o mundo em que eu atuo é de fato simples, se eu tiver dados e fizer as análises adequadas consigo compreender as causas que geram certos efeitos.
- Crença no resultado: meu maior desejo é maximizar o ganho – medido em termos financeiros – no curto prazo.
- Crença na separatividade: o melhor que eu posso fazer é otimizar a minha parte.
O Covid-19 nos revela uma outra perspectiva, completamente real, que pode ser simplificada em três desafios:
- Desafio de lidar com a incerteza radical diante da nudez da realidade complexa.
- Desafio de buscar a perenidade e sobrevivência como maior ganho possível.
- Desafio de fatorar a interdependência na equação do negócio.
São novas perspectivas que precisam passar a fazer parte do modelo mental dos indivíduos e do modelo de pensamento estratégico das empresas.
Consideramos cinco pontos fundamentais para a navegação desta transição:
1. Resiliência é mais importante que eficiência.
2. Sobrevivência do sistema é mais importante que a maximização do ganho individual.
3. Decisão coletiva é mais importante do que certezas pessoais.
4. As ferramentas e modelos que criaram esta realidade não são aptos para orientar a transição de paradigma.
5. É no calor desta batalha que se forjarão líderes e culturas para um mundo sem manual de operações.
1. Resiliência é mais importante que eficiência
As empresas enfrentam o desafio de sobreviver e percebem, talvez pela primeira vez, que resiliência é mais importante que eficiência. A resiliência implica em resistir à mudança sem perda das características iniciais da organização, como um bambu que verga mas não se rompe. Algo como suportar uma crise ou continuar vivo. Em um primeiro momento a resiliência será importante, em especial para lidar com ritmos econômicos intermitentes.
Neste sociomercado, entretanto, a doutrina da eficiência máxima – pautada na crença do controle e resultado – implicou em um baixo grau de resiliência. A busca da supereficiência e superotimização torna o sistema frágil, pois pressupõe uma realidade “normal”: um cenário de futuro que segue a conhecida distribuição normal, em que se estima uma média, e um certo desvio esperado de ocorrências distantes – mas não muito – da média. Se o mundo seguir como se espera, haverá um prêmio pela eficiência. Porém, como temos visto, cada vez há mais ocorrências inesperadas com efeitos cumulativos, que trazem um impacto que nunca fez parte dos planejamentos.
Muitas empresas se entregaram ao corte máximo de custos, buscando índices mais atraentes para o investidor, ou resultados imediatos mais reluzentes. A ilusoriedade desta lógica fica evidente em tempos como os de hoje. O ponto mais trágico aqui é perceber que a definição de eficiência como parâmetro de curto prazo é que causa a perda de resiliência. Se fatorássemos com maior cuidado o longo prazo para compor o índice de eficiência, certamente teríamos capacidade mais forte de lidar com as mudanças inesperadas.
Ao perseguir este caminho as empresas reduziram potencialidade de inovação, flexibilidade de operação e a capacidade humana de absorção de choques. Pior, não desenvolveram as redundâncias necessárias. Como explica Taleb: “redundancy seems like a waste if nothing unusual happens. Except that something unusual happens – usually.” Na natureza, por exemplo, observamos como os sistemas vivos tem camadas de redundância que são vitais. Muitas empresas supereficientes não conseguem se articular para lidar com mudanças repentinas simplesmente porque não tem os recursos disponíveis para tal.
Mas esta transição arquetípica exigirá algo mais que resiliência. Estes são tempos de de incerteza radical. Como explicam Mervin e King, incerteza radical é diferente do risco, pois enquanto ao segundo se associam probabilidades de ocorrência e impactos, no primeiro isto não é possível. Trata-se de um situação em que há conhecimento incompleto sobre o mundo e também sobre as conexões de causa e efeito de nossas ações. Neste contexto a resiliência será como um primeiro passo na direção do desenvolvimento da capacidade de florescer e se desenvolver conforme aumentam o impacto e a frequência das mudanças inesperadas. Conhecida como antifragilidade (2), será uma competência essencial para esta transição.
2. Sobrevivência do sistema é mais importante que a maximização do ganho individual
A rentabilidade individual é secundária quando hoje a comparamos com a saúde de todo o ecossistema em que a organização vive: colaboradores, clientes, parceiros, comunidades. Sem a vitalidade do ecossistema a organização perde sua própria capacidade de existência. A transição que vivemos nos mostra esta perspectiva de maneira contundente, e realça a importância de se desenvolver a competência de gestão estratégica associativa.
Lievegoed, em 1969, já apontava esta necessidade para as organizações ”… to be able and willing to act intelligently in the interest of the whole”. Moggi e Burkhard explicam que a organização associativa tem consciência de que é parte integrante de um sistema econômico, social e ambiental mais amplo, otimizando resultados em um processo sustentável.
A gestão associativa demanda a criação de uma governança estratégica para o ecossistema de negócios – ao menos para os agentes mais relevantes – que permita de fato a alocação dos recursos na busca da vitalidade do ecossistema, de modo que o objetivo principal de adaptação e sobrevivência seja atingido.
Precisaremos aprender a contabilizar as diferentes dimensões de valor que a empresa agrega para o ecossistema de negócios em que atua, e precisaremos repriorizar nossas decisões estratégicas tendo como objetivo comum a vitalidade do ecossistema.
Um passo chave nesta direção é reconhecer o ecossistema de negócios ampliado. Não se trata de entender os stakeholders envolvidos, mas sim de aprofundar o entendimento do ecossistema de negócios, os diferentes nichos e papéis de parceiros produtores, parceiros fornecedores, clientes, e incluir grupos de indivíduos e comunidades envolvidos. Assim será possível desenhar fóruns de decisão estratégica – possivelmente digitais – em que as perspectivas de todos na rede de negócios possam ser observadas e consideradas.
É chegado o momento de acelerar a emergência dos ecossistemas associativos.
3. Decisão coletiva é mais importante que certezas pessoais
Compreender um contexto de incerteza radical com mudanças inesperadas exige diferentes perspectivas. Trata-se de adotar sem subterfúgios uma visão sistêmica concreta: em um sistema complexo a parte nunca pode compreender o todo, apenas o todo pode reconhecer a si mesmo. E o que é o todo em uma decisão estratégica de uma organização? O mais perto que podemos chegar de conhecer a realidade é integrar a diversidade de visão de todo o grupo que avalia uma solução. Nonaka e Zhu, por exemplo, traduzem isto de uma maneira elegante: “Only variety can handle variety.“
Nesta transição estrutural as questões se apresentarão de modo cada vez mais ambíguo, como dilemas temperados por divergências, em que a linha que separa o certo do errado parece ter desaparecido. Nestas situações é imperativo que a imagem comum da situação formada pela diversidade do grupo seja muito firme, para que consiga sustentar a seleção de bons critérios na potencialmente angustiante escolha de soluções para enfrentar os dilemas.
Porém a formação de uma imagem comum sólida em um grupo exige muito do líder. As empresas habituaram-se com CEO’s que decidem rapidamente, que demonstram certeza, que dirigem as decisões a partir de suas próprias ideias. Para lidar com a ambiguidade precisaremos de CEO’s com ouvidos mais atentos, com mais tempo de reflexão, e com mais perguntas sábias do que certezas arrogantes.
Teremos que desenvolver, como grupos, maior tolerância à ambiguidade. Esta capacidade, no nível das relações, é fundamental para nutrir a competência de anti-fragilidade da organização.
4. As ferramentas e modelos que criaram esta realidade não são aptos para orientar a transição de paradigma.
Por conta do arrendamento de sua autonomia de pensamento a gurus de gestão e grandes consultorias, boa parte das organizações tem como verdade inquestionável hoje uma visão analítico-financista que torna opaca visão integrada da realidade. Privilegia-se a decisão baseada em protocolos analíticos de laboratório – como bem explica Giridharadas – que tornam grandes consultorias e financistas experts em qualquer assunto, com seus fatiamentos de dados, apresentações pré-formatadas com design elegante, e hipóteses auto-realizáveis que trazem como decorrência principal a completa alienação do contexto.
Utilizáveis e práticos em muitos casos locais e não complexos (onde foram originados) estes protocolos rapidamente passaram a ser vistos como instrumento de solução para qualquer problema. Eis aí nossa questão: determinados problemas – como a transição pela qual passamos – não se prestam a ser solucionados utilizando estes protocolos. São problemas que residem em sistemas complexos, em que a solução requer uma abordagem prático-intuitiva, que conte com pessoas (de verdade) que conheçam a realidade, e métodos heterogêneos de aproximação. São soluções que emergem iterativamente conforme o problema é enfrentado, que exigem o desenvolvimento do pensar autônomo e o exercício de perguntas poderosas.
As ferramentas que ajudaram a cavar o buraco do sociomercado não podem ser vendidas como solução para nos tirar dele.
5. É no calor desta batalha que se forjarão líderes e culturas para um mundo sem manual de operações
A transição que enfrentamos levará indivíduos, grupos e organizações a situações que testarão sua maturidade emocional e capacidade de resistência.
Ao passarmos juntos por experiências muito intensas os vínculos que se formam e a maneira como respondemos às demandas inesperadas ganham um significado perene. Como em um processo de seleção natural acelerada, no “calor da batalha” que ora enfrentamos os valores, comportamentos e qualidades que emergirem e possam ser percebidos, selecionados e, de modo consciente e genuíno, associados ao que consideramos o perfil necessário de líderes, serão a pedra fundamental da liderança e cultura nesta transição.
Da mesma maneira, havendo atenção e coordenação para a captura de aprendizados, a experimentação forçada de novas maneiras de fazer a gestão e encontrar soluções para clientes forjará o pilar de uma cultura única e, por construção, apta a lidar com esta transição.
Este momento traz uma janela de oportunidade para que a organização molde os princípios que pautarão sua cultura e liderança para um novo futuro que não tem e nunca terá um manual de operações, dada sua natureza incerta e complexa.
Conclusão
Como líderes vivemos agora algo completamente novo, angustiante em uma profundidade inédita. É um desafio coletivo de ordem de magnitude global. Estamos trilhando a nossa própria jornada do herói, individualmente e em grupo. Como em toda jornada arquetípica o herói é transformado pelo próprio caminhar. O desafio desta transformação é desenvolver as novas crenças e práticas para navegar esta transição, é seguirmos num caminho desconhecido e incerto para a construção de um novo modelo estrutural de sociedade-economia. Temos que nos tornar os líderes para um mundo sem manual de operações – finalmente.
(1) Sociomercado: contexto em que as leis e forças econômicas de mercado são consideradas superiores como critério de decisão e planejamento para todas as questões envolvendo o âmbito social.
(2) Antifragilidade: Antifragilidade: propriedade de se beneficiar dos choques e mudanças, se desenvolver quando exposto à volatilidade, incerteza e desordem.
Marcos Thiele
Abril de 2020
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Referências:
Anand Giridharadas, Winners take all, Vintage Books, 2019
Mervin King, John Kay, Radical Uncertainty, Bridge Street Press, 2020
Nassim Taleb, Antifragile, Random House, 2012
Bernard Lievegoed, The developing organization, Tavistock Publications, 1973
Jair Moggi, Daniel Burkhard, Espírito transformador, Ed. Antroposófica, 2000.
Ikujiro Nonaka, Zhichang Zhu, Pragmatic Strategy, Cambridge University Press, 2012